Análise do Poema
Norma Goldstein
As significações "escondidas" no poema
Quando se lê um poema, percebe-se que ele contém beleza. Algumas vezes, tem-se até vontade de reler. Mas é difícil que alguém note, de imediato, quanta elaboração existe no interior daquele texto. É preciso ler o poema várias vezes, de maneiras diferentes, para descobrir as suas diversas significações. Talvez isto fique mais claro a partir de um exemplo:
CANÇÃO MÍNIMA
No Mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E no planeta, um jardim;
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro.
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de uma borboleta.
(Cecília Meireles)
À primeira leitura, a "Canção mínima" revela uma pincelada descritiva, com cenários naturais: planeta, jardim, canteiro, violeta, borboleta. Envolvendo os elementos do cenário natural, é sugerido o "mistério" do "Sem-Fim", mencionado no início e no final.
Pode-se ampliar esta primeira leitura, verificando os vários níveis de construção do texto, o que conduz o leitor à descoberta de novas significações.
Caminhos da "descoberta":
as várias leituras do poema
Composição gráfica
Comece por notar o espaço que o poema ocupa na página; é quase um desenho: primeiro, um grupo de dois versos, a primeira estrofe. A seguir, um conjunto de quatro versos, a segunda estrofe, que se separa das outras duas, visualmente, por um intervalo ou linha em branco. Por último, a estrofe final. A organização do poema na página, isto é, sua composição gráfica, indica três partes, sendo a primeira e a última graficamente semelhantes.
O ritmo do poema
Releia o poema em voz alta, procurando perceber seu ritmo. Os versos ou linhas têm todos o mesmo tamanho. Há sons que se respondem como ecos: sem-fim/jardim; canteiro/inteiro; planeta/borboleta. Algumas palavras aparecem duas vezes: sem-fim; planeta; canteiro. Observe como o conjunto se harmoniza pela cadência rítmica ou alternância entre sílabas fortes e fracas. Efeitos sonoros e cadência equilibram ritmicamente o texto.
O léxico e a sintaxe do poema
Observe as palavras que compõem o poema e o modo como elas se organizam. O vocabulário ou o léxico se constitui de palavras simples e conhecidas pelo leitor. Verificando a categoria gramatical dessas palavras, você encontrará um predomínio de substantivos. E verbos? Expresso, apenas um, no segundo verso ou linha do texto: equilibra-se. Este verbo fica subentendido nas vírgulas dos versos seguintes, onde se sugere a repetição de uma situação:
E no planeta, (equilibra-se) um jardim;
e, no jardim, (equilibra-se) um canteiro;
no canteiro, (equilibra-se) uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim, (equilibra-se)
a asa de uma borboleta.
Não só a situação se repete, mas também o modo como as palavras se combinam sintaticamente, já que todos os versos apresentam a mesma construção sintática.
Quanto à pontuação, o poema é rico em vírgulas. Além daquelas que apontam a elipse do verbo equilibrar, aparecem outras e também o ponto e vírgula no final do quarto verso. Esta pontuação se justifica porque o texto apresenta uma enumeração de elementos, separados uns dos outros pela vírgula e pelo ponto e vírgula. É enumerada uma série de substantivos cuja predominância sugere pouco movimento ou estaticidade. A construção semelhante dos versos indica a ligação entre os elementos que compõem o quadro: partes de um conjunto em equilíbrio, como insiste o verbo elíptico (equilibra-se). A organização sintática apóia a intenção descritiva percebida logo à primeira leitura.
Aspecto semântico
A composição gráfica, o ritmo, o léxico e a construção sintática do poema trazem ao leitor pistas para ampliar a significação do texto, enriquecendo o aspecto semântico, o da significação. A composição gráfica sugere três partes. O ritmo regular e a construção sintática apontam insistentemente para o equilíbrio do conjunto. Retomando o que já foi observado até aqui, passe a interpretar o poema, ampliando sua significação.
Interpretação
O planeta do início está personificado, como se fosse um ginasta que se equilibra. Em que lugar? "No Mistério do Sem-Fim". O estranho lugar do equilíbrio sugere duas interpretações: 1ª) a posição geográfica do planeta Terra no sistema solar, dentro do universo infinito da astronomia; 2ª) os mistérios que ainda persistem neste mundo onde seres humanos e natureza buscam um convívio harmônico. Graficamente, as iniciais maiúsculas de Mistério do Sem-Fim conferem certo tom solene aos dois versos da primeira estrofe. O mesmo clima reaparece na última estrofe que, graficamente, também é aparentada à primeira, como já se viu.
A segunda estrofe, o quarteto ou conjunto de quatro versos que ocupa o centro do poema, apresenta uma série de elementos naturais numa gradação semelhante à aproximação de uma câmera de cinema. O espaço vai ficando cada vez mais próximo e mais reduzido: planeta ― jardim ― canteiro ― violeta. A gradativa diminuição do espaço, na estrofe do meio, contrasta com o infinito sugerido nas outras duas estrofes. No sexto verso, aparece um elemento indicador do tempo: o dia inteiro, isto é, permanentemente, sem cessar. O infinito espacial coincide com o infinito temporal, já que tanto o tempo como o espaço são "sem-fim".
Na terceira estrofe reaparece o infinito, espaço imaginário "entre o planeta e o Sem-Fim" onde se equilibra "a asa de uma borboleta". A asa da borboleta do verso final sugere múltipla significação: fragilidade, colorido, beleza, fertilidade (o pólen das flores transportado pelas borboletas), transformação (a passagem de lagarta à borboleta). Como a borboleta se equilibra entre o planeta e o Sem-Fim, é ela o elemento que liga o espaço graduado (planeta ― jardim ― canteiro ― violeta) ao espaço infinito (sem-fim). Ou seja: harmoniza-se o conjunto pela beleza, fragilidade, colorido e possibilidade de transformação que une as partes do conjunto.
Conclusão (interpretação final)
No seu todo, a "Canção mínima" propõe um universo em equilíbrio onde o espaço conhecido do homem (estrofe do meio) está cercado pelo mistério do infinito (primeira e última estrofes). Como anuncia o título, o poema é mínimo: apenas oito versos ou linhas. Embora mínima, a canção consegue propor uma visão de mundo: o ser humano vive em meio a um universo cujos mistérios ele não domina, mas cuja beleza e harmonia ele consegue perceber.
Processo a ser repetido
O que se fez aqui, com a "Canção mínima", de Cecília Meireles, pode ser repetido com qualquer outro poema. Há etapas de leitura ou de análise que podem conduzir o leitor às pistas de significação sugeridas pelos vários aspectos ou níveis do texto:
1. Nível rítmico;
2. Nível lexical;
3. Nível sintático;
4. Nível semântico
Nos capítulos que se seguem, você vai conhecer as estratégias que ajudam a análise de cada um desses aspectos. Antes de fazê-lo, é importante lembrar que a divisão em níveis é um procedimento didático provisório. A meta é a compreensão do texto que, ao final da análise, deve ser interpretado como um "todo", em sua unidade.
Os muitos caminhos possíveis
Não há receitas para analisar textos. As sugestões desta obra apenas apontam alguns dos caminhos possíveis. Cada leitor fará sua análise. Sempre parcial e incompleta, uma vez que a interpretação ideal seria aquela obtida pelo conjunto de todos os leitores de um texto. Mesmo assim, parece-me que a riqueza de significações escondidas num poema justifica sua múltipla leitura e interpretação - ainda que parcial - por qualquer leitor bem intencionado.
(Análise do Poema. Norma Goldstein. 1ª edição. 3ª impressão. Editora Ática. São Paulo. 2006. Páginas 5, 6, 7 e 8)