Como preparar a infraestrutura para o tempo quente
Foto: Roberto Dziura Jr./AEN
Aceleradas pelas mudanças climáticas, as temperaturas extremas exigem uma revisão urgente na infraestrutura urbana e energética do país
por Carlos Bocuhy
As diretrizes ambientais da União Europeia estão sendo ajustadas para se preparar para o crescimento da população global, que deve aumentar em um terço, chegando a 10 bilhões de pessoas até 2050.
Este crescimento trará consigo demandas sem precedentes:
- O uso global de recursos dobrará até 2060
- A demanda por água aumentará 55% até 2050
- O consumo de energia crescerá 30% até 2040
Nos primórdios da era industrial, na Inglaterra de 1800, o economista e matemático Thomas Malthus preocupava-se com a relação entre aumento populacional e capacidade de produção de alimentos. Suas estimativas apontavam para crescimento populacional de forma geométrica, que dobraria a cada 25 anos, enquanto a produção de alimentos cresceria apenas de forma aritmética.
Felizmente, o cenário futuro previsto por Malthus, que considerava um mundo com 1 bilhão de pessoas em 1800, não se concretizou. Os meios de produção evoluíram, ampliando significativamente a capacidade de suprir alimentos, e a taxa de crescimento populacional começou a desacelerar. Hoje, a população mundial cresce cerca de um terço a cada 25 anos.
A União Europeia, apesar de seu crescimento populacional estável, enfrenta desafios significativos. A Agência Ambiental Europeia reconhece que, embora a prosperidade e o bem-estar tenham atingido níveis sem precedentes, os sistemas de produção e consumo da UE ainda prejudicam as metas de sustentabilidade. Enraizado no modelo de crescimento capitalista, o continente consome mais recursos e contribui mais para a degradação ambiental do que outras regiões. Apesar disso, sua pegada de consumo não mostra sinais de reduções significativas.
Para avançar é preciso mudar também a mentalidade empresarial, saindo do terreno sem futuro do business as usual.
As medidas tradicionais de desempenho financeiro, na era industrial, provocaram o atual caos ambiental que hoje buscamos corrigir. São necessárias novas medidas de desempenho empresarial, conforme alertam Robert Kaplan e David Norton, da Harvard Business School. Uma delas é o “balanced scorecard, que considera múltiplos fatores além do lucro.
Nesse modelo de gestão, em vez de ficar mudando os rumos do negócio à mercê da sanha do capital e sua lucratividade ambiciosa, para atender às demandas de investidores, de fornecedores ou mesmo dos clientes, será preciso reforçar valores éticos e tolerar perdas para sobreviver continuamente, no rumo da sustentabilidade.
Para equacionar uma nova perspectiva empresarial e de consumo, o Pacto Ecológico Europeu e os seus pacotes de economia circular visam tornar a produção mais eficiente, poupar recursos e estabelecer um sistema de consumo sustentável. A Europa precisará adotar uma política de decréscimo no consumo para avançar nessa direção.
Apesar de estar em seu oitavo programa de ação, o decréscimo de consumo foi de apenas 4% entre 2010 e 2020. A prioridade a longo prazo deste oitavo programa é que, até 2050, os europeus vivam bem e dentro das possibilidades do planeta numa economia em que nada seja desperdiçado. Até lá, contudo, estaremos com a temperatura média global acima dos 3ºC – e isso exigirá investimentos altíssimos em infraestrutura urbana, energética e de transportes, entre outras.
Manter sustentabilidade em cenários de calor e eventos climáticos extremos exigirá mais do que projeções lineares, mas sim transformações efetivas na produção de alimentos, bens de consumo, mobilidade e construção. Ao mesmo tempo, será preciso aumentar a resiliência dos ecossistemas essenciais, onde a natureza se vê danificada acima de seus limites naturais por superexploração e contaminação por elementos poluentes.
Será preciso um novo modelo de governança voltado à manutenção das condições naturais essenciais à sobrevivência da sociedade humana e das espécies vivas.
Os estudos iniciais do IPCC apontavam a necessidade de manter a temperatura global média em 1,5ºC para 2100. Mas a realidade do aquecimento médio, sem computar o benefício dos 361,9 milhões de km2 de área global coberta por oceanos, já atinge nas regiões continentais, como a sul-americana, mais de 2ºC -- e traz ainda o prognóstico pouco otimista de enfrentar o triplo dessa média até 2100.
Estudos da Nasa para regiões tropicais, como o Brasil, projetam cenários localizados muito adversos, com aumentos médios de 4ºC dentro de 50 anos.
Nossa infraestrutura está simplesmente ficando quente demais para funcionar, ou pelo menos funcionar bem.
O calor extremo implicará a revisão de muitas estruturas que foram construídas dentro de médias históricas de temperatura, que já não fazem mais sentido e foram abolidas pela atual realidade climática.
O calor elevado pode causar falhas nas pontes, pelo mesmo motivo que nos trilhos de trem. Recentemente, a AMTRAK americana noticiou aos usuários : “Devido ao excessivo calor a velocidade será reduzida e haverá atraso de 30 a 60 minutos”. Os trilhos de aço se expandem e estradas de asfalto também podem ceder, graças à termodinâmica dos materiais utilizados.
O calor tem dois efeitos na transmissão de energia: reduz a quantidade de eletricidade que as linhas de energia podem fornecer, além de aumentar a demanda de condicionadores de ar ligados agora em sua potência máxima, sobrecarregando ainda mais a rede. As baterias de telefones e carros descarregam mais facilmente quando o calor acelera suas reações químicas internas.
As dificuldades com o calor extremo apresentam muitas variáveis, inclusive o desafio da falta de energia em função de sobrecarga na rede. Assim, sistemas auxiliares de sobrevivência, como centros comunitários de resfriamento e estruturas de sombra, vêm sendo elementos defendidos por arquitetos e engenheiros, assim como um novo código construtivo que permita a descarbonização das construções e sua maior resistência ao clima.
Mas há uma preocupação intensa subjacente à área de construção civil, transportes e de saúde pública: para além de tempestades e furacões, será preciso reprojetar toda a infraestrutura em uso tão rapidamente quanto o clima está mudando. Isso inclui salvaguardas para extremos de calor e chuva.
É indubitável que a capacidade humana em lidar com sua maquinaria é infinitamente maior que sua capacidade de lidar com a amplitude e complexidade dos ecossistemas naturais e sua biodiversidade, sistemas hídricos e a segurança alimentar.
Essa visão ecossistêmica continua sucumbindo diante da ambição econômica, e este é o principal ponto de preocupação no processo de mitigação e adaptação: neutralizar e transformar a má economia e o fluxo financeiro que vem degradando ecossistemas essenciais, como a Amazônia, Cerrado e Pantanal.
O grande marco adaptativo para o Brasil será, além de lidar de forma eficiente com metodologias voltadas à sustentabilidade e indicadores já experienciados pela União Europeia na área produtiva, transmutá-los para nossa realidade social e tropical.
Quando olhamos para a depauperação das condições vitais dos solos continentais e dos plânctons nos oceanos, percebe-se a fragilidade ecossistêmica diante da aceleração do calor, e assim o colapso de Thomas Malthus volta à cena em outra perspectiva: o colapso da natureza.
No contexto das alterações climáticas será imprescindível conter o aumento do calor e regenerar ecossistemas, visando manter condições naturais essenciais para produção de água e de alimentos para a próxima geração de 10 bilhões de pessoas.