Encontrei, andando/navegando pela internete, o seguinte texto, que não deixa de ser interessante, apesar de não concordar com alguns de seus pontos de vista, mas que tem muita coisa pra se pensar, inclusive em relação à realidade local (deste ‘site’)
http://www.cce.ufsc.br/~nelic/boletim8-9/robervalpereyr.htm
MERCADO E CULTURALISMO VERSUS POESIA
Roberval Pereyr
Em se tratando de arte, a pior crise é a da qualidade. Na atualidade, a proliferação da má poesia — sob sua forma estrita: o poema — chega a ser excessiva. Trata-se certamente de um fenômeno global. Em escala alternativa, nunca foi tão fácil publicar. Os armazéns virtuais de poemas, via internet, têm suas inúmeras janelas abertas para o mundo. As grandes editoras, que poderiam editar e distribuir autores marginalizados representativos, não fogem, por sua vez, à dura lei do grande mercado: o lucro sempre em primeiro plano. Mas, mais grave que a proliferação de poetas insípidos, é uma certa visão — e uma larga vigência — que usurpam quase todo o espaço das mais autênticas manifestações artísticas, ou que, em outro plano, parecem negar a própria existência da obra de arte, na perspectiva que lhe é própria.
Este é o quadro. Não o pinto, no entanto, para lamentar. Trata-se, antes, de uma tomada de posição contra o elogio e a prática do que chamo o critério da quantidade indiscriminada. Tal critério — levado a efeito, indiretamente, inclusive por certos acadêmicos estudiosos da cultura — contribui, ao meu ver, para uma nivelação por baixo das obras de arte. O principal argumento, por parte de quem assume a referida postura, reside talvez no fato de que é preciso incluir, tolerar (o outro e a sua diferença), enfim, relativizar. E tudo em nome do direito, mais que legítimo, de que todos possam realmente dizer a que vêm.
Em princípio, perfeito. Na prática, um desastre. Entre outras coisas, porque tal postura — associada a um alto grau de manipulação que ela permite — oculta e protege muito bem umas tantas falácias. A primeira, e central, é a seguinte: por ser excessivamente relativista — levando, portanto ao democratismo — mascara uma prática que, por isso mesmo, tende a ser, ao seu modo, ditatorial. Por outro lado, mesmo resvalando para esse exagero, onde inevitavelmente degrada-se, não tolera qualquer diferença que não se ajuste, por exemplo, aos postulados da democracia. Isto suscita uma questão, deveras incômoda, mas que urge fazer: por que a Democracia — tal como até antes de Nietzsche a Verdade e a vontade de Verdade — é uma espécie de deusa inquestionável quanto à sua validade? Por que, ao contrário dos demais “grandes valores, idéias e instituições” do Ocidente, parece não ter sofrido, ainda, o devido processo de “desconstrução”? A quem isto interessa, uma vez que a “sagrada voz do povo”, hoje como nunca, parece cada vez mais intermediada — e, aí, não raro adulterada e redirecionada — pelas diversas instâncias de poder, tais como a econômica, a política, a sindical, a acadêmica e, a serviço de todas elas, os grandes veículos de comunicação?
O meu questionamento insinua, efetivamente, que na prática tal democracia — que é, em verdade, uma espécie de massocracia global, tendo como contraponto o que vou aqui chamando de uma tribocracia incipiente e multifacetada cujas tribos o que desejam, em sua maioria, é apenas uma fatia maior da massa envenenada — mais que obsoleta, é uma outra forma de ditadura, que apenas impõe com vaselina e disfarces, suas próprias formas de violência. Uma violência que engendra a mesmice dinâmica, que intensifica, em muitas frentes distintas, processos artificiais de subjetivação em função do consumo, que loteia e aluga o corpo e a mente das pessoas (com a agravante de que são as próprias pessoas que pagam, com o seu dinheiro, o seu tempo e a sua saúde, por tão estranho e tão caro aluguel). E mais: em nome dessa mesma democracia, os órgãos de comunicação nos impõem — e aí nos tratam como idiotas — aquilo que chamam de auto-regulamentação. E nós, em nome da coerência, ou por horror, sob certo sentido mais que justificado, à censura, obrigamo-nos a ficar com a língua travada. Mas, abaixo desta, isto é, na garganta, vai-se avolumando um sufocante e insuportável nó.
A conseqüência de tudo isso é que as coisas se dão como se só fosse aceitável a outridade do mesmo, a diferença circunscrita ao campo da identidade. Talvez na prática — e sob qualquer regime — as coisas sejam infeliz e inevitavelmente assim. Pois bem, admito: as coisas na prática são mesmo assim. O meu inferno é o outro. A diferença mais radical é um direito que só se impõe mediante uma boa dose de violência. Eis, ao meu ver, a base mais sólida para o autêntico diálogo: uma base que põe, com bastante clareza, a natureza, a extensão e o limite das relações, em quaisquer dos seus planos (do pessoal ao multinacional). Esta visão nada tem a ver com a diferente mesmice, característica daquele tipo pernicioso de democracia — filha mais legítima do capital —, associada, em resumo, à prática da inclusão sem critérios, ou por critérios escusos; da pseudo-relativização sem limites: o avesso eficiente da ditadura; da mascaração, enfim, da já referida intolerância constitutiva do outro em sua radicalidade. Trata-se de uma prática levada a efeito pelo Sistema (em suas intercambiáveis dimensões: macro ou micro, massa ou tribo, ou...) e que implica, por parte da grande maioria das pessoas, no alinhamento a uma ideologia generalizada que, não raro, oblitera a tomada de posição realmente diferenciada.
Este estado de coisas acarreta outras conseqüências (que podem também ser causas) que a mim me parecem óbvias. Uma delas implica na adoção daquele princípio da quantidade que, necessariamente, subtrai qualidade, já que esta, no caso, passa automaticamente a segundo plano: é preciso, a qualquer custo, incluir. O incômodo, penso, é que tal postura — para quem com ela pretenda manter-se na coerência — inviabiliza, por exemplo, a negação de obras e eventos “artísticos” televisivos de enorme (quer dizer, “popular”) audiência, mas de repetitividade e pobreza (e até de vileza) indiscutíveis. Sob que argumentos negá-los, sem que estes impliquem no reconhecimento da inconsistência, na prática, do que há de mais caro à democracia? Além do mais, democraticamente, as instituições midiáticas se auto-regulamentam...
Vivemos na era do decadente e absurdo capitalismo, que é a era da propaganda, que diz: estamos na era das emergências. A postos — para dar o devido e sistemático respaldo — alguns setores da academia. O Sistema, mesmo esmagando a Universidade — isto é, mesmo esmagando-se, mas em ocasiões e lugares que lhe convêm, e na medida adequada — agradece. Tudo isso faz-nos deparar com uma espécie de “verdade” da ciência e de “mentira” da propaganda, ocasionando, mais uma vez, a exclusão do poeta.
A verdade da ciência — na perspectiva, por exemplo, dos estudos culturais — consistiria, quem sabe, na afirmação indireta da inexistência da obra de arte, sob a alegação direta de que apenas o contexto (e suas implicações) e o olhar (condicionado e/ou interessado) do leitor ou do espectador é que vão determinar se esta ou aquela linguagem é ou não artística e qual o seu valor. Trata-se — não custa repetir, com outros que já refletiram sobre o assunto — de uma meia verdade que se autoinvalida quando pretende passar pela inteira verdade. É como se fosse possível a alguém reunir os melhores futebolistas do seu bairro e, após um discurso muito bem costurado, formar uma equipe que viesse a vencer a seleção brasileira. Eu, de minha parte, não teria dúvida: entre as conjeturas dum abalizado acadêmico e a simples afirmação em contrário de um Zico, ficaria, sem nenhum temor de errar, com a palavra do craque. E por quê? Simplesmente porque me parece evidente que os piores jogadores da seleção brasileira são, em princípio, muito melhores do que os exímios da minha rua, embora entre estes, uma vez criadas as condições, um e outro, não por acaso, talvez viessem a se destacar.
Com as obras de arte dá-se da mesma forma, apenas, e felizmente, o terreno é muito mais movediço, o campo de jogo muito mais labiríntico e complexo e as possibilidades de valoração muito mais amplas e discutíveis. Uma coisa, porém, é certa: Pelés e Picassos não são encontráveis em qualquer boteco. Questão de gosto? Sim, desde que seja para escolher entre um Roberto Rivellino e um Diego Maradona, entre um Miguel de Cervantes e um Guimarães Rosa, ou entre um Zé Limeira, o poeta do absurdo, aquele genial e lendário repentista nordestino, e um Campos de Carvalho, autor de títulos magníficos e obras malditas, tais como A lua vem da Ásia, Vaca de nariz sutil e O púcaro búlgaro.
Quanto à “mentira da propaganda”, desejo ressaltar apenas um ponto: na atualidade, o que tem e o que não tem “qualidade” igualam-se — isto é, sofrem um processo de falsificação — ao cair na agência publicitária: aí (sobretudo quando movido a muito dinheiro), quase tudo é passível de transformar-se em “mercadoria”, a ser destinada àqueles que são, ou já foram, transformados em “consumidores”. Na condição de “consumidor” — e causa-me espanto a forma dócil com que praticamente todos se permitem tatuar com este estúpido rótulo —, o indivíduo se deixa submeter a um tipo generalizado de “sujeitamento”: ele se coisifica e — catedrático ou funkeiro — passa a ser descartável. A agência publicitária e o canal de tv, ao qual está plugada, são por excelência as fábricas de mito do nosso tempo: mitos ocos e descartáveis, através de embalagens e de marcas estetizadas e repetidas à exaustão, para adoráveis consumistas compulsivos (alguns deles, os mais cultos, até sabedores de que são os mitos que governam os homens), submetidos a um intenso mas condicionado processo de subjetivação, do qual, paradoxalmente, também são agentes. Eis aí, em foto colorida, o multifacetado, iludido (e, em muitos casos, também ilusor) sujeito consumidor pós-moderno. Em todo caso, ninguém a salvo, exceto, precariamente, por uma certa maneira de resistir.
Conclusão: a poesia não existe. Não dá lucro: nega-se a virar mercadoria (como há muito lembrava-nos Octavio Paz), perdendo assim a visibilidade, o seu suposto lugar de destaque na grande vitrine do mercado global. E aqui localizo a mais sutil e perversa forma de ditadura a que o presente sistema democrático submete, quase sempre, as autênticas manifestações artísticas que, desvinculadas da ideologia do lucro absurdo e do consumo induzido, poderiam levar de fato a uma pluralização de vozes e de tendências no cenário cultural do país. Refiro-me à censura pela supressão, pela invisibilização: não falar bem, não falar mal, não falar nada: não “anunciar”. Não mostrar. Há um enorme Brasil a ser visibilizado.
Voltando à poesia: refiro-me àquela mais genuína, insubmissa a qualquer ideologia programática (isto é: reducionista e rígida), ao consumismo generalizado, qualidade esta aliada, evidentemente, a uma vocação que torna imperiosa, por parte do seu autor, a necessidade de criar. E mais: que dota o processo criativo de um certo “mistério”, acompanhado de um distinto estado de espírito (uma “disposição” e um “clima”), primeiramente chamado de “inspiração”.
Cabe então a pergunta: em que medida vive o Brasil a crise aqui esboçada? Soma-se a este difícil cenário a carência de poetas vivos de porte, como pregam freqüentemente reconhecidos críticos do país? Vivemos, de fato, um período lacunar? Não, na medida em que esses poetas, ainda que não sejam muitos, o que é natural, existem; sim, porque estão, eles e/ou suas obras, ora isolados (no restrito terreno das pequenas edições das grandes editoras, ou de órgãos estatais); ora muito mal acompanhados por uma avalanche de poetas que se lançam (com todo direito, aliás, desde que não associado a freqüentes e forçadas investidas, no sentido da obtenção de um reconhecimento crítico a qualquer custo) às pouco reconhecidas praças alternativas; ou finalmente perdidos, como “agulhas num palheiro”, nas enormes antologias virtuais, via internet, com suas inúmeras janelas abertas para o mundo, ou seja, para todos e para ninguém. Como, então, chegar a eles e, feito isto, reconhecê-los? Será isto possível, em termos mais amplos?
Não creio que o mercado deva, por livre e espontânea vontade, mudar sua lógica. Não creio no Estado. Não creio na “massa” — essa coisa informe que nem chega a ser uma abstração de “povo”, que é, já este, uma abstração —, no sentido de que, criadas as condições, pudesse se transformar numa massa leitora de boa poesia.
Creio, às vezes, em mim — e em certos parceiros, muitos deles transitando nos séculos, com os quais ora afino-me, ora não. E, mesmo em conflito com a minha crença, e não raro indisposto contra meu ego, preciso escolher, consciente de que o ato da escolha, seja lá do que for, é igualmente o ato de escolher-me. Compromisso e encontro num terreno arriscado, mas com a necessária dose de coragem, como também nos lembra, em seu livro A coragem de criar, Rollo May.
E é na condição basicamente de um “criador” de poesia (caso em que a vivência subtrai a dúvida) que me posiciono: o critério primeiro para se considerar uma obra de arte, na sua inteireza e incompletude (na sua especificidade, enfim), não deve ser, penso, o político-ideológico, mas o estético, aqui entendido como aquele que a considera (a obra — no caso, a poética), a partir de um ângulo que lhe é próprio. Ou seja: aquele que inclui o sentido do mistério, do indizível que envolve a criatividade (e que está vinculado a uma outra questão: a da identificação e do gosto), associado aos meios específicos (mais ainda: especiais) pelos quais o artista organiza os diversos elementos de sua linguagem, encontrando uma solução única, ainda que não perfeita, ou mesmo definitiva, para cada obra, em resposta àquele estranho chamamento, ou estado de espírito, que está na origem e no desenrolar do ato criativo. Inspiração e trabalho, ou trabalho inspirado, aquele que de súbito, e inexplicavelmente, se altera, porque tudo se altera. Engenho e arte: dois aspectos indissociáveis e complementares de um mesmo fazer, ainda que, para certos artistas, o aspecto labor predomine, ou, ao contrário, para outros predomine o fator inspiração, sendo que os dois aspectos, que mutuamente se engendram, podem se alternar em circunstâncias diversas, mas sempre em termos de predominância.
A minha escolha, portanto, se pauta, entre outras coisas, por esta visão: escolho os poetas de que gosto e com que me identifico e os “valoro” a partir do que considero a dimensão do seu dom e a grandeza (e impacto) da sua linguagem, isto é, a sua capacidade de conferir formas a esse dom, realizando poemas. E aqui invoco o conceito de forma adotado por Eduardo Subirats (Da vanguarda ao pós-moderno, p.84), quando diz: “A forma tem o caráter de uma determinação interior e verdadeira, subjetiva e intencional, que a filosofia aristotélica identifica com a energia, com a atividade criadora e que definitivamente, supõe um elemento ativo na existência humana”. Trata-se de uma visão em que a obra de arte, ultrapassando as ideologias de plantão, ou seja, incorporando-as para superá-las (e agora volto a evocar Rollo May), conjuga em seu bojo o desempenho das “funções intelectivas, volitivas e emocionais”, mantendo assim uma “relação direta com os níveis inarticulados ou ‘inconscientes’ da cultura”. (A coragem de criar, p.49). No que se refere especificamente à poesia, esta perspectiva se radicaliza, razão pela qual, na minha opinião, não se poderia exigir do poeta moderno e/ou contemporâneo uma “coerência”, uma “clareza” e uma “objetividade”, no sentido tradicional. Pois ele (o poeta) utiliza-se de uma linguagem em última instância regida pelo princípio do ritmo (impulso primordial que se encarna em imagens), que contém o logos mas o submete, mesmo quando lhe confere um destaque, em atendimento a estranhos desígnios. “Desígnios” (ainda Subirats) que se transformam em “desenhos” — intenção e força interior configurando-se, no caso, numa forma especial: o poema.
Visualizados nesta perspectiva, e erigindo uma obra de porte, há na atualidade, entre os que conheço (um Brasil está por ser descoberto), um certo número de poetas que merecem destaque, independentemente de concordarem ou não com o meu ponto de vista. Citarei entre eles uns poucos, cuja obra, no todo ou em parte, tenho já há algum tempo freqüentado: em Minas, um Iacyr Anderson Freitas; no Rio, um Paulo Henriques Britto e um Marco Lucchesi; no Paraná, um Sérgio Rubens Sossélla; e finalmente, abreviando a lista, na minha terra, a Bahia, destaco os nomes de Ruy Espinheira Filho e de Antonio Brasileiro, este último, na minha opinião, um dos grandes poetas de Língua Portuguesa na atualidade.
Bibliografia
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
IDEM. Os filhos do barro. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno. Trad. Luiz Carlos Daher e Adélia Bezerra de Menezes. São Paulo: Nobel, 1986.
MAY, Rollo. A coragem de criar. 5. ed. Trad. Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.