O início deste século XXI está marcado pela pluralidade
das sociedades. Isso se deu basicamente com a modernização.
Compreendemos modernização a aplicação da tecnologia e do
conhecimento científico nos processos de produção, a mudança
dos padrões tradicionais de trabalho. Com ela veio também
desigualdades sociais, sendo ampliado cada vez mais, pois os
benefícios da tecnologia não chegam igualmente a todos os
grupos da sociedade.
O multiculturalismo surge neste contexto com o intuito
de articular a educação com a diversidade cultural presente nas
sociedades contemporâneas, sociedades que não possuem
mais a característica monocultural do passado, mas multicultural.
Histórico
Nos Estados Unidos, a preocupação multicultural surge
com a luta pelos direitos civis, ocorrida na década de 1960. A luta pelos direitos civis foi organizado pelo movimento negro norteamericano (estadunidense)
frente à desigualdade existente entre negros e brancos
(Gonçalves & Silva: 2002: 43).
Embora tenha surgido especificamente com a
preocupação da diversidade étnica, outras propostas voltadas
para o reconhecimento de outros grupos que não sejam étnicos,
especialmente as mulheres, os homossexuais, grupos religiosos
e portadores de deficiência, também são defendidas. Nesse
caso, utiliza-se o termo pluriculturalismo.
Para o pluriculturalismo, a educação deve levar em conta
essa diversidade existente nas sociedades contemporâneas,
com grande número de grupos sociais e culturais e às interrelações
entre eles.
No caso da Europa, nas décadas de 1950 e 1960,
aconteceu a migração de trabalhadores oriundos da América
Latina, do Caribe, da África e da Ásia. Esse movimento acontece
ainda nos dias atuais, principalmente porque os surinameses
falam a língua da Holanda, nigerianos e sul-africanos falam a
língua da Inglaterra, marroquinos falam a língua da França, o
que facilita a busca de sobrevivência nos países desenvolvidos.
Os países europeus que têm dificuldade em resolver seus
próprios conflitos culturais, recebe uma variedade de novos
costumes à eles, com a chegada dos árabes, principalmente
muçulmanos, de africanos, de asiáticos, caribenhos e sulamericanos.
Assim, na década de 1970, diversos países europeus já
iniciaram um processo de renovação educacional, com
preocupações ligadas às disparidades culturais existentes,
principalmente com os filhos de imigrantes que freqüentavam
as escolas européias.
No caso latino-americano, especificamente o Brasil, tem
outras peculiaridades. A colonização trouxe relações de poder
bastante conhecidas: genocídio e escravização dos povos
indígenas, a exploração das riquezas naturais, o comércio e a
escravização de povos africanos etc.
Portanto, em nosso caso, os portugueses não
encontraram um povo indígena, mas uma variedade enorme de
etnias, ou melhor, de povos, com costumes, organizações
parentais e sociais diferentes, línguas e cultos bastante variados.
O mesmo com os povos africanos. Chegaram
escravizados ao Brasil, africanos de uma variedade de etnias,
com suas próprias línguas, religiões, organizações parentais,
sociais etc.
Completando a multiplicidade étnica da sociedade
brasileira, no início do século XX houve a defesa que era preciso
“branquear” o Brasil. Assim, os imigrantes italianos, alemães,
suíços etc., chegaram ao Brasil com vantagens de acesso à
terra e ao emprego, vantagens essas jamais dada aos negros
que aqui já estavam e com os quais a sociedade brasileira tinha,
e continua tendo, uma enorme dívida.
Retornando ao nosso tema, sobre multiculturalismo e
educação, no Brasil as primeiras experiências surgiram com as
escolas no interior das comunidades indígenas. No início, essas
escolas ainda estavam sob a lógica da dominação e da
homogeneização cultural. Aquelas escolas indígenas transmitiam
o que se entendia como conhecimento da “cultura nacional”,
cujos conteúdos eram basicamente europeus, como exemplo a
difusão da língua portuguesa entre estes povos.
As conquistas conseguidas pelas organizações
populares, não-governamentais etc., na Constituição Federal de
1988 foram significativas para uma mudança que se começa a
operar. Com relação aos povos indígenas, surge uma nova
política, principalmente como a autonomia dos povos indígenas.
Surge a escola indígena, com alfabetização bilíngüe, em
português e na língua nativa, além dessa escola incorporar nos
currículos os costumes, os mitos e os elementos da história de
cada povo.
A população negra organizada configura-se outro
segmento que tem reivindicado a necessidade de uma educação
mais inculturada. Inicialmente, surgiram reivindicações por uma
escola que esteja atenta à realidade da população negra, que
respeite e valorize a cultura afro-brasileira, que dê especial
atenção à história da África e dos africanos aqui escravizados.
Com o inciso III do artigo 206 da Constituição Federal de
1988, que destaca o “pluralismo de idéias e de concepções
pedagógicas”, assim como os “Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN’s), publicados em 1997, que incorpora a
pluralidade cultural, projetos políticos pedagógicos com base em
pressupostos étnicos vêm sendo realizados.
A justificativa para a introdução do tema da “pluralidade
cultural” aparece no volume 10 dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (p. 22):
“É sabido que, apresentando heterogeneidade
notável em sua composição populacional, o Brasil
desconhece a si mesmo. Na relação do País consigo
mesmo, é comum prevalecerem vários estereótipos,
tanto regionais quanto em relação a grupos étnicos,
sociais e culturais.
“Historicamente, registra-se dificuldade para se lidar
com a temática do preconceito e da discriminação
racial/étnica. O País evitou o tema por muito tempo,
sendo marcado por “mitos” que veicularam uma
imagem de um Brasil homogêneo, sem diferenças,
ou, em outra hipótese, promotor de uma suposta
“democracia racial”.
A questão multicultural nos últimos anos vem adquirindo
cada vez maior abrangência, visibilidade e conflitividade, no
âmbito internacional e local. Isso preocupa muitas sociedades.
O debate é intenso nos Estados Unidos e também na Europa.
No Brasil, a questão multicultural apresenta uma configuração
própria, pois está marcado pelos povos indígenas e afrobrasileiros
que procuram afirmar suas identidades numa situação
de relações de poder assimétricas, de subordinação e acentuada
exclusão.
É exatamente nesta conjuntura que a UNESCO em sua
Conferência Geral, realizada em Paris, de 15 de outubro a 03 de
novembro de 2001, aprovou uma “Declaração Universal sobre a
Diversidade Cultural”. Coincidentemente, esta Declaração surge
logo após a ONU realizar a III Conferência Mundial de Combate
ao Racismo, Discriminação, Xenofobia e Outras Formas de
Intolerância, realizada em Durban, África do Sul, dos dias 31 de
agosto a 08 de setembro de 2001.
A questão da relação entre cultura e educação é bastante
polêmica. Este é um campo que atravessa as discussões na
área acadêmica e na área social, dos grupos étnicos
organizados. Outra característica, é que o multiculturalismo não
surgiu na academia. São os grupos sociais discriminados e
excluídos de uma cidadania plena, especialmente os grupos
ligados às questões de identidade, como os negros, ou afrobrasileiros,
que constituem o local da produção teórica. A entrada
nas universidades acontece num segundo momento, mesmo
assim, num embate e conflito intenso.
No entanto, essas experiências ainda são feitas sob os
referenciais teóricos e metodológicos ocidentais, tidos como
universais. Reflexões sobre uma educação com base no
universo sócio-cultural afro-brasileiro vêm surgindo, portanto,
amparado no multiculturalismo.
Articular igualdade e diferença constitui a questão
fundamental. O problema não é afirmar um pólo e negar o outro,
mas possuir uma visão dialética da relação entre igualdade e
diferença. Não se pode contrapor igualdade à diferença. A
igualdade não está oposta à diferença, mas sim à desigualdade,
e diferença não se opõe à igualdade e sim à padronização, à
uniformidade.
Nem padronização nem desigualdade. A igualdade que
queremos construir assume o reconhecimento dos direitos
básicos de todos. No entanto, esses todos não são
padronizados, não são os “mesmos”.
Por fim, surge a tensão entre universalismo e relativismo
cultural na ação educativa, portanto nas questões curriculares.
Nossa escola está construída institucionalmente tendo por base
a afirmação de conhecimentos e valores considerados universais,
assentada na cultura ocidental, européia, considerada como
portadora da universalidade.
Esse tema começa a ser discutido entre educadores e
pesquisadores em educação, especialmente da área de currículo,
didática, filosofia da educação e sociologia da educação.
O Multiculturalismo diante o Liberalismo
Pensadores liberais têm apresentado críticas ao
multiculturalismo. Ficarei com a crítica de Arthur Schlesinger
(apud Torres: 2001: 207):
“Quaisquer que sejam os crimes próprios da Europa,
este continente também é a fonte – a fonte única –
das idéias de liberdade individual, de democracia
política, do império da lei, dos direitos humanos e da
liberdade cultural, que constituem nossos mais
preciosos legados, a que quase todo o mundo aspira
em nossos dias. Estas são idéias européias, não
são idéias asiáticas, africanas ou do Oriente Médio”.
A preocupação liberal aqui é de que a estatura da cultura
ocidental, tida como verdade universal, possa ser diminuída.
Outro argumento apresentado é o de que o
multiculturalismo criaria guetos e tribos culturais, destruindo os
laços de coesão de nossa sociedade.
Especificamente no caso brasileiro, há uma idéia de
cultura nacional, consolidada sob três pilares: a unidade
lingüística, a hegemonia do cristianismo e a submissão de
diversidades raciais com o “mito da democracia racial”.
O Multiculturalismo frente aos Neoconservadores
Pensadores da direita, neoconservadores, também têm
argumentado contra o multiculturalismo. Ficaremos com a
posição de William Safran (apud Idem: Ibidem: 215):
“muitos defensores do multiculturalismo acreditam
que sua cultura de minoria étnica é não apenas igual,
mas superior à da maioria. (...) o multiculturalismo é
radical, pelo fato de rejeitar tradições culturais há
muito estabelecidas. (...) o multiculturalismo é
antimoderno, na medida em que ressalta a ação
afirmativa e o recrutamento por inscrição (em
oposição ao baseado no mérito)”.
O multiculturalismo é antimoderno para os pensadores
de “direita” por deformar a meritocracia.
Importante ressaltar que os neoconservadores ao
mesmo tempo em que são contra o enfoque multiculturalista na
educação, aceitam o pluralismo cultural, pois este está baseado
não na diversidade etno-racial, mas na diversidade cultural e na
nacionalidade. Aqui, quero lembrar que os “parâmetros
curriculares nacionais” utilizam ‘pluralidade cultural’.
O Multiculturalismo frente à Esquerda
Pensadores de “esquerda” também têm apresentado
suas críticas ao multiculturalismo. Cabe, nesse momento ver a
posição de Cameron McCarthy (apud Idem: Ibidem: 224):
“O que em última análise os multiculturalistas
procuram promover é a centralidade social da vida
do ‘bom burguês’ para a minoria pobre, que não
constitui ameaça”.
O que a “esquerda” diz, é que o multiculturalismo se
deixou absorver pelo sistema e possuir as mesmas deficiências
que a lei dos direitos civis. Os fundamentos do multiculturalismo
não representam ameaça à ordem social existente, e por isso
não trazem soluções radicais para os problemas sociais,
econômicos e políticos ligados à discriminação, desigualdade,
exploração, assim como não desafia os direitos de propriedade.
O Pensamento Multicultural
O multiculturalismo é pensado por uma pluralidade de
posicionamentos. Assim, há diferentes enfoques de uma
educação multicultural. Nos Estados Unidos, dois importantes
autores que abordam a questão do multiculturalismo são Peter
McLaren e James Banks. McLaren inicia sua reflexão com base
na Pedagogia Crítica, em seguida, com reflexões na perspectiva
pós-moderna. James Banks assume uma perspectiva de caráter
liberal.
Procurarei analisar aqui as tendências apontadas por
Peter Mclaren (apud Candau: 2002: 82): Multiculturalismo
Conservador, Multiculturalismo Humanista Liberal,
Multiculturalismo Liberal de Esquerda e Multiculturalismo Crítico.
Multiculturalismo Conservador: Nessa corrente, há o
reconhecimento da multiculturalidade, no entanto, considera
inferiores os dialetos, os saberes, as línguas, as crenças e os
valores pertencentes aos grupos subordinados, considerados
inferiores. Presente nas teorias evolucionistas que justificam
políticas imperialistas. É uma posição bastante forte em nossa
sociedade.
Multiculturalismo Humanista Liberal: aqui, se afirma a
igualdade intelectual entre diferentes etnias e grupos sociais, o
que justifica que todos competem em igualdade na sociedade
capitalista. Defende medidas para remover obstáculos e melhorar
as condições econômicas e socioculturais das populações
dominadas. No entanto, a cultura privilegiada é a dos grupos
dominantes.
Multiculturalismo Liberal de Esquerda: essa corrente dá
ênfase à diferença cultural. Tende a favorecer e valorizar as
experiências dos grupos populares e étnicos, não levando em
consideração a cultura dominante.
Multiculturalismo Crítico: defende que as representações
de raça, gênero e classe são produtos de lutas sociais sobre
signos e significações. Para essa corrente, as questões relativas
à diferença são determinadas pelos processos históricos, pelas
mentalidades e ideologias, pelas relações de poder e mobilizam
processos políticos e sociais.
Embora proponha essas quatro tendências, reconhece
que as características de cada posição tendem a se misturar
umas com as outras dentro do horizonte geral da vida social. A
descrição de cada tipo de multiculturalismo tem papel heurístico,
já que as diferentes posições se interpenetram nas práticas
sociais.
Outro pensador defensor de um multiculturalismo na
educação é James Banks, professor do Centro para a Educação
Multicultural da Universidade de Washington (cf. Idem: Ibidem:
84).
Banks defende a educação multicultural como solução
para o problema do fracasso escolar de estudantes oriundos
das camadas populares e de grupos étnicos, como os negros.
Para Banks, a causa do fracasso escolar está na cultura
em que os alunos são socializados, que não favorece
experiências fundamentais para o bom desempenho escolar.
Afirma Banks, do que ele denomina “diferença cultural”,
que as diferentes culturas possuem linguagens, valores,
símbolos e estilos de comportamentos diferentes, que têm de
ser compreendidos na sua originalidade. As relações entre as
culturas não podem ser analisadas numa perspectiva
hierarquizadora.
Para Banks, o que deve ser mudado não é a cultura do
aluno, mas a cultura da escola, que atualmente é construído a
partir de um único modelo cultural, o hegemônico, apresentando
um caráter monocultural.
Banks vai identificar dez formas de abordar a questão
das relações entre educação e culturas no contexto escolar, com
o mesmo rótulo de educação multicultural (apud Idem: Ibidem:
86-89): étnico-aditivo, de desenvolvimento do autoconceito, da
privação cultural, centrado na linguagem, anti-racista, radical,
baseado na meritocracia, assimilacionista, do pluralismo cultural
e o da diferença cultural.
Os principais autores europeus defensores do
multiculturalismo são o inglês Stuart Hall, os franceses Charles
Taylor e Jean Claude Forquin, a espanhola Margarita Bartolomé
Pina.
Não podemos esquecer do argentino Carlos Alberto Torres
e, no Brasil vem surgindo grupos de pesquisa sobre
multiculturalismo e educação. Atualmente existem grupos na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, na Universidade Federal de Minas
Gerais, na Universidade Federal de Santa Catarina e na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, além de uma nova
geração de pesquisadores em educação envolvidos com essa
temática, como Cirena Calixto da Silva (2001) que pesquisa sobre
Políticas Públicas Educacionais e o Negro e Luciane Ribeiro Dias
Gonçalves (2001) que pesquisa sobre o Multiculturalismo no
Cotidiano Escolar.
Especificamente sobre a população negra, aconteceu
pela primeira vez, no ano de 2002, um grupo de estudos, “GE
Relações Raciais/Étnicas e Educação”, na 25ª Reunião da
ANPED (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em
Educação), ocorrida em Caxambu, MG, nos dias 29 de setembro
a 02 de outubro de 2002.
Não posso deixar de reconhecer que outras experiências
vêm sendo feitas. Entre elas, o Cursinho Pré-vestibular para
Negros, como os do Núcleo de Consciência Negra da USP. A
experiência desses cursinhos trabalha com duas lógicas, a lógica
da adesão e a lógica de resistência. Por um lado, reforça o papel
atribuído aos exames vestibulares, subordinado à finalidade mais
imediata de ingresso no ensino superior. Por outro lado, joga-se
com a regra do jogo em vigor sem, no entanto, deixar de
questiona-las. Nesta perspectiva, resiste-se à lógica competitiva
e individualista que caracteriza os exames vestibulares e introduz
outros conteúdos que não estão direta nem necessariamente
orientados a esses exames.
Posso estar enganado, mas acredito que os Cursinhos
Pré-vestibular para Negros caminham para o ensino cooperativo,
ensino fundamental e médio. É uma saída ou estratégia para os
que querem incorporar a abordagem multicultural. Nesse ensino,
muitas questões pedagógicas na perspectiva multicultural serão
introduzidas: a seleção dos conteúdos escolares, as estratégias
de ensino, o relacionamento professor(a)/estudante e estudante/
professor(a), o sistema de avaliação, o papel do educador(a), a
organização da sala de aula, as atividades extraclasse, a relação
escola/comunidade etc.
Retornando, o Cursinho Pré-vestibular para Negros é
uma Ação Afirmativa, uma vez que, busca inserir negros na
universidade e, ao mesmo tempo, com o importante papel de
capacitar esses negros de forma que eles se percebam como
importantes agentes sociais.
No meu caso particular, penso que essas experiências
na educação, no entanto, são realizadas dentro de referenciais
teóricos e metodológicos ocidentais, tidos como universais:
“a inclusão das mulheres, dos negros, (...) só
acontece na medida em que estes grupos cedem à
homogeneização e abrem mão de suas diferenças
e, portanto, de seus interesses, na esfera pública”
(Pinto, C.R.J.: 1999: 60).
Atualmente, surgem propostas que acenam para uma
ruptura com a universalização, em defesa da heterogeneidade
presente nas sociedades, reconhecendo o multiculturalismo
como:
“possibilidade de construção de um espaço público
que expresse o reconhecimento da pluralidade
étnica, racial e sexual, tratando a todos por igual,
mas não igualmente (...) as particularidades possam
ser respeitadas, negociadas e representadas nas
diferentes instituições da vida social” (Silvério: V.R.:
1999: 55).
Emergem experiências educacionais no interior das
complexas estruturas de matrizes africanas no Brasil. Aqui, a
utilização de instrumentos de análise e metodologias com
referências teóricas ocidentais, empobrecem a complexidade
do universo sócio-cultural afro-brasileiro:
“em se tratando de estudos que se propõem a
conhecer e valorizar feições étnico-históricoculturais,
e por isso mesmo socialmente situadas,
que não há um único estilo de apreender e de
significar o mundo. (...) implica, pois, mudança
conceitual” (Silva, P. B. G.: 2001: 154-155).
Em minha pesquisa de doutorado, desenvolvo algumas
noções presentes na complexidade do pensamento de matrizes
africanas, buscando
“compreender uma ‘Pedagogia Afro-brasileira’,
através da sistematização das experiências
educativas presentes nos rituais de iniciação das
religiões de origem africana no Brasil” (Oliveira, J.M.:
2001: 02).
Na construção desse pensamento educacional afrobrasileiro,
alguns conceitos precisam ser muito bem
compreendidos, por conta de não se conseguir penetrar nesse
universo: Oralidade, Ancestralidade e Sincronicidade.
Conclusão
O pensamento ocidental, influenciado pelo racionalismo
e empirismo, criou um abismo entre o pensamento científico e o
pensamento mitológico. Esse afastamento partiu do pressuposto
de que a ciência só poderia existir se voltasse as costas para o
universo das imagens, como se este fosse um mundo ilusório,
ao passo que o mundo real seria o mundo material, descoberto
pela lógica da racionalidade.
Procurando favorecer a reintegração do homem consigo
mesmo, com o próximo e com a natureza, aparecem grandes
interrogações que impulsionam a emergência de tentativas de
construção de novos paradigmas como resposta à crise global
da consciência dividida, atomizada, alienada, propondo-se uma
nova cosmovisão que possibilite uma superação do paradigma
racionalista-empirista.
Em coerência com uma postura multiculturalista
“os negros latino-americanos, principalmente no
Brasil, configuram-se como parte de outro grupo
étnico que tem reivindicado a necessidade de uma
educação mais inculturada na realidade, nas raízes
e nas especificidades da sua cultura. (...) podemos
afirmar, então, que muitas são as raízes, os
contextos, as origens e as teorias, que hoje nos
permitem avançar na prática pedagógica e na
pesquisa sobre as articulações entre a educação e
cultura” (Candau: 2002: 62.66).
Estes referenciais constituem o desafio em se pensar
uma educação a partir da pluralidade constituinte em nosso país.
É permitir-se o difícil exercício da diversidade, reconhecendo as
diferenças e olhando-as através de suas singularidades:
“A valorização dos estudos do cotidiano, por sua vez,
emerge do movimento de ruptura paradigmática que
abriu espaços a heurísticas que dão suporte a
projetos investigativos, os quais, buscam outros
estilos de trabalho, de pensamento, de análise, de
compreensão” (Bandeira: 2000: 143).
Temos assim, atualmente, pesquisadores e educadores
que se posicionam contra o multiculturalismo e o surgimento de
pesquisadores e educadores que vêm defendendo uma
educação multicultural.
Basicamente, os argumentos de quem se posiciona
contra o multiculturalismo está no medo da destruição da herança
intelectual ocidental. Para estes, os princípios filosóficos
universais, que tornam o conhecimento e a educação possíveis
estão sob crítica.
Os conceitos de verdade, realidade, objetividade e
racionalidade, aceitos pela civilização ocidental estão desafiados.
Para os que se posicionam contra o multiculturalismo, o
abandono de padrões tradicionais de verdade e objetividade tem
sido devastador quando tratam todas as culturas como
intelectualmente iguais e, portanto merecendo igualmente serem
representadas no currículo, assim como na defesa da ação
afirmativa em lugar do mérito ou excelência acadêmica como o
critério principal para as contratações nas universidades.
Argumentam os que se posicionam contra o
multiculturalismo que rejeitar os princípios de inteligibilidade de
nossas instituições, culturais e científicas, é abalar as práticas
de ensino e pesquisa que são a razão de ser da universidade e
ameaçar as bases da civilização ocidental.
Os defensores do multiculturalismo defendem que a
suposta verdade objetiva entendida como correspondência entre
nosso conhecimento e uma realidade independente é uma noção
sem conteúdo significante.
Desafiar visões tradicionais de conhecimento e verdade
não apresenta ameaça para a instituição educacional ou qualquer
outra instituição, pois os princípios teóricos não sustentam
nossas práticas, mas apenas fornecem modos de descrever a
prática para nós mesmos.
Charles Taylor trata o multiculturalismo como um assunto
histórico e político em vez de epistemológico. Ele diz que a
democracia possui duas tradições:
A política da dignidade mútua, baseada na idéia de que
todos os humanos merecem igualmente respeito e direitos iguais;
e a política da diferença, baseada na necessidade de
reconhecimento da identidade única de indivíduos e grupos.
O multiculturalismo é uma extensão da política da
dignidade com a política da diferença, ou seja, política de respeito
mútuo com a política de reconhecimento.
Na educação, se defende o respeito mútuo e o
reconhecimento para cada cultura dentro do currículo.
A educação tem falhado em superar as barreiras entre
ricos e pobres (veja diferença de escolas privadas e públicas),
entre homens e mulheres (machismo ainda é fortíssimo) e entre
os de descendência européia e os de descendência africana.
Em nosso caso, nossa cultura acadêmica apresenta
enorme dificuldade de lidar com a diferença. As políticas de ação
afirmativa têm bastante resistência. Quanto aos cursos, o tema
da diversidade cultural é trabalhado por um ou outro professor,
mas não á assumido como um dos princípios orientadores da
formação docente, inicial e continuada.
A grande dificuldade de se trabalhar estas questões está
na crença ainda bastante forte do “mito da democracia racial”.
Nossa educação tem características fortemente monoculturais
e privilegia uma perspectiva universalista vinculada à visão
iluminista da realidade.
Uma sociedade verdadeiramente democrática precisa
superar as barreiras de classe, assim como deve superar as
barreiras étnicas/raciais.
A defesa de um currículo multicultural nas escolas de
ensino fundamental e médio e a defesa de políticas afirmativas
nas universidades, representam um primeiro passo para a
construção da democracia.
Núcleo de Consciência Negra na USP
20 de novembro - Dia da Imortalidade de Zumbi
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