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segunda-feira, 30 de março de 2015
Sartre: A gratuidade da existência
Para Aristóteles, a essência humana existe antes mesmo de o ser humano existir. Ao longo da vida humana, a essência vai se realizando com a ação. Para compreender isso, pense em uma semente, como a do ipê. A semente traz em si mesma a identidade do vegetal. Sua germinação, crescimento e transformação em uma árvore florida nada mais são que a realização de sua essência.
A filosofia existencial se opõe a essa ideia e afirma que, no caso do ser humano, a existência precede a essência.
O ser humano não tem uma essência ao nascer; vai construindo aquilo que é ao longo de sua vida, de sua existência.
Entre os filósofos existencialistas, destaca-se Jean-Paul Sartre. Em um estágio na Universidade de Berlim, conheceu os trabalhos de Husserl e ficou muito impressionado. Decidiu aplicar o método fenomenológico ao estudo da existência humana, mas sem afastar-se das ideias de Husserl, como fizera Heidegger. Escreveu vários livros sob essa influência, sendo o principal deles " O ser e o nada ", publicado em 1943.
Nessa obra, Sartre retoma o dualismo psicofísico do ser humano, mas para afirmar que, embora dual, o humano é uma unidade de corpo e consciência, que são inseparáveis, uma vez que um corpo sem consciência não é humano e uma consciência sem corpo é impossível. Utilizando conceitos da filosofia de Hegel, Sartre afirma que há no humano duas modalidades de ser: o corpo é um ser-em-si (que existe em si mesmo, que tem uma identidade), como as coisas, enquanto a consciência é um ser-para-si (que existe para si mesmo, que sabe que existe, mas que não tem uma identidade). Essa existência dual é geradora de angústia, pois o humano anseia ser idêntico a si mesmo (ser-em-si), mas não pode sê-lo; ao mesmo tempo, também não poderia ser pura consciência (ser-para-si), pois para que haja consciência é preciso que estejamos no mundo e só podemos estar no mundo encarnados, por meio do corpo.
Para Sartre, apenas os seres humanos são conscientes e a consciência é o único ser-para-si em meio a um mundo de coisas, de seres-em-si. No caso das coisas, a essência vem em primeiro lugar, dando uma identidade a cada ser. Mas, no caso do ser humano, por ser consciente (ter ciência de alguma coisa é saber; ter consciência é saber que sabe), a existência é anterior a essência. Isso significa que primeiro existimos, somos lançados no mundo, para que depois possamos ser alguma coisa. Nascemos sem essência e sem identidade e as construímos enquanto existimos, ao longo de nossas vidas. É por isso que Sartre abandona a noção de natureza humana, que se refere a uma essência comum a todos os humanos, para falar em uma condição humana.
A condição humana é marcada por três realidades, muito próximas daquelas identificadas por Heidegger: o humano é um ser-no-mundo; um ser com-os-outros; e um ser para-a-morte.
A condição humana determina que o ser humano construa sempre sua identidade. Ele nunca é alguma coisa, ele sempre está em determinada condição. Você, por exemplo, hoje é estudante do Ensino Médio, mas não será isso sempre; você está estudante, assim como um dia estará universitário profissional de determinada área, etc. Mas nenhuma dessas realidades dá ou dará a você uma identidade fixa. Por isso, Sartre afirma que humano não é propriamente um ser, mas um vir-a-ser, na medida em que ele é sempre um projeto.
Em sua relação com os outros, o ser humano recebe deles uma identidade. Por exemplo, um professor de Filosofia é reconhecido por seus alunos como professor, recebe deles a identidade de professor. Ele sabe, porém, que essa identidade é falsa, pois ela não o define, ele não é apenas professor, mas também pai, marido, amigo, irmão, etc. Como vivemos sempre a falta de identidade, ficamos animados quando nos percebemos reconhecidos pelos outros, que nos atribuem uma identidade. Então representamos essa identidade, agimos como se, de fato, fôssemos isso. A aceitação de uma identidade imposta por outro limita as possibilidades do indivíduo e, portanto, fere sua liberdade. A esse tipo de ação Sartre chama de má-fé, pois a pessoa que vive assim está mentindo para si mesma, e sabe disso. Viver na má-fé é viver uma existência inautêntica.
Uma existência autêntica é a recusa da má-fé e está fundada na afirmação da liberdade, que nada mais é do que a capacidade de fazer escolhas. Para Sartre, o ser humano está "condenado a ser livre" ´, pois a única escolha que ele não pode fazer é a de não ser livre. O ser humano é livre porque sua existência é gratuita, contingente, não tem uma finalidade definida. Na medida em que é nada, o humano pode ser tudo, pode ser qualquer coisa.
A liberdade se traduz no ato de escolha. Cada situação que vivemos nos coloca algumas possibilidades, e temos sempre que escolher entre essas possibilidades. Se você está na escola, por exemplo, pode decidir assistir ou não à aula. Toda escolha tem suas consequências, pelas quais somos responsáveis. Assim, a liberdade gera em nós uma angústia: a angústia de ter que decidir, a angústia de se saber responsável pela escolha e por suas consequências.
A escolha gera uma responsabilidade por toda a humanidade, pois, alguém escolhe sempre para si mesmo e para os outros. Se escolho, por exemplo, a vida do crime, estou afirmando que ela é uma boa opção, e não apenas para mim, mas para todos os outros seres humanos. E sou responsável por ela.
A filosofia de Sartre recebeu críticas por ser pessimista; mas, ao contrário, ela é a afirmação da abertura, da possibilidade. O ser humano é o ser da liberdade, da escolha, do projeto. A vida é sempre uma construção. Defendendo-se dessas críticas, Sartre afirmou, em uma palestra em 1946, que "o existencialismo é um humanismo".
Escolhendo-me, escolho o homem
Se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável pelo que é. Desse modo, o primeiro passo do existencialismo é o de pôr todo homem na posse do que ele é, de submetê-lo à responsabilidade total de sua existência. Assim, quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é apenas responsável pela sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens. A palavra subjetivismo tem dois significados, e os nossos adversários se aproveitaram desse duplo sentido. Subjetivismo significa, por um lado, escolha do sujeito individual por si próprio e, por outro lado, impossibilidade em que o homem se encontra de transpor os limites da subjetividade humana. É esse segundo significado que constitui o sentido profundo do existencialismo. Ao afirmarmos que o homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens. De fato, não há um único de nossos atos que, criando o homem que queremos ser, não esteja criando, simultaneamente, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser. Escolher ser isso ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo, pois não podemos nunca escolher o mal; o que escolhemos é sempre o bem e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos. Se, por outro lado, a existência precede a essência, e se nós queremos existir ao mesmo tempo que moldamos nossa imagem, essa imagem é válida para todos e para toda a nossa época. Portanto, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira. Se eu sou um operário e se escolho aderir a um sindicato cristão em vez de ser comunista, e se, por essa adesão, quero significar que a resignação é, no fundo, a solução mais adequada ao homem, que o reino do homem não é sobre a terra, não estou apenas engajando a mim mesmo: quero resignar-me por todos e, portanto, a minha decisão engaja toda a humanidade. Numa dimensão mais individual, se quero casar-me, ter filhos, ainda que esse casamento dependa exclusivamente de minha situação, ou de minha paixão, ou de meu desejo, escolhendo o casamento estou engajando não apenas a mim mesmo, mas a toda a humanidade, na trilha da monogamia. Sou, desse modo, responsável por mim mesmo e por todos e crio determinada imagem do homem por mim mesmo escolhido; por outras palavras: escolhendo-me, escolho o homem.
SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1984. p. 6-7. (Os Pensadores.)
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