O ensaio de Max Weber sobre o qual nos propomos a refletir, recente ganhador - entre uma centena - do prêmio de melhor ensaio de todos os tempos, promovido pelo jornal Folha de São Paulo, busca estabelecer uma correlação, ou, mais precisamente, uma relação de causa e efeito entre algo que denomina "ética", surgida em determinado contexto cultural e religioso sob o signo do protestantismo puritano, e o sistema econômico dominante a partir do século XIX, conhecido como capitalismo.
Nesta abordagem, fazemos uma tentativa de nos distanciarmos um tanto da generalizada aceitação da existência dessa correlação tal como colocada por Weber, para verificar a propriedade das palavras contidas no título da obra, tendo em vista que este contém em si mesmo enunciada a tão festejada tese de Max Weber.
Que o capitalismo moderno tenha se originado e medrado em ambiente puritano está fora de dúvida, é fato histórico, e geográfico. O que se pretende, neste singelo trabalho, é tão-somente colocar algumas questões sobre as bases conceituais de Weber, chegando a delimitar, precisar, esclarecer melhor que tipo de correlação efetivamente existiu, e ainda existe em parte, entre puritanismo e capitalismo.
Pretendemos, assim, examinar até que ponto merece efetivamente o nome de "ética" o espírito, ou melhor seja, a mentalidade, o conjunto de pressupostos da ação dos adeptos do puritanismo e lançar algumas bases para esclarecer em que medida é cabível atribuir-se a um sistema econômico-político-social, o capitalismo, um "espírito", como pretendeu Weber, como ele próprio reconheceu, de forma "pretensiosa".
1. O "Capitalismo Puritano"
Iniciamos nossa reflexão sobre a tese weberiana enunciada no título do ensaio, examinando, primeiramente, o significado do termo capitalismo, cuja essência, segundo nosso entendimento, reside em ser um sistema econômico-social que trata o homem da mesma maneira como todo o conjunto dos meios materiais de produção, como um instrumento, não como sujeito e fim de todo o processo de produção.
Por capitalismo acreditamos, portanto, que se deva entender, primordialmente, o sistema econômico-social que coloca no mesmo plano os recursos naturais, os recursos financeiros, os recursos humanos, os recursos tecnológicos e quaisquer outros meios de produção. No capitalismo, portanto, o ser humano é transformado de fim em meio, de sujeito de todo o processo econômico em mero objeto e instrumento, descartável, para o atingimento de um valor maior: a acumulação de capital.
Afirma George Soros, que além de ser o mais poderoso especulador financeiro internacional da atualidade, também se considera um filósofo: "enquanto o capitalismo continuar vitorioso, a busca do dinheiro sobrepujará todas as outras considerações sociais" (A Crise do Capitalismo, p. 150), o que inclui, evidentemente, quaisquer considerações éticas.
Precisamente a inversão de ordem de valores, em que o trabalho humano, de valor maior, passa a mero instrumento de acumulação patrimonial e, mais recentemente, de acumulação especulativa financeira, merece o nome de "capitalismo" de origem puritana.
O sistema capitalista moderno é, pois, aquele em que o trabalho humano racional é valorizado apenas enquanto instrumento de acumulação de capital. O homem é visto e tratado como mero instrumento de produção e também como máquina de consumo, tudo em função da geração mais acelerada possível da riqueza, ideal único do sistema.
Seu erro fundamental consiste justamente na rejeição da dimensão subjetiva do trabalho humano e seu rebaixamento a força de produção, estabelecendo o primado do material e a colocação em posição de subordinação do que é propriamente humano, seus valores morais e sua vida espiritual.
A civilização construída pelo capitalismo moderno é, assim, na verdade, essencialmente anti-ética, e, na sua essência, materialista como nenhuma outra na história humana.
Especificamente, o atual capitalismo financeiro especulativo, sob o signo do qual vivemos, é muito propriamente denominado "selvagem". E sua selvageria reside precisamente em ser um espécie de estado de natureza hobbesiano em que todos lutam contra todos sem sujeição a qualquer valor ético, onde prevalece o mais forte ou mais apto a sobreviver, crescer e reproduzir-se.
O capitalismo puritano que impregna a Modernidade é, portanto, pré-cristão, no sentido de que promove uma verdadeira seleção natural no mundo econômico, sem observância de qualquer critério moral, no qual ao mais fraco economicamente e ao menos apto a servir como instrumento da acumulação capitalista é negado até mesmo o direito à própria subsistência e a reproduzir sua força de trabalho, freqüentemente descartada e sacrificada ao "deus-mercado", tido por onisciente e onipotente.
Objetivando, concretamente: no sistema capitalista financeiro puro, hoje imposto em toda sua extensão e efeitos aos países periféricos do Terceiro Mundo, o capital financeiro não atende a qualquer pressuposto verdadeiramente ético, ou seja: não se subordina a valores humanos, vive em função de si mesmo, para multiplicar-se, como um vírus que parasita um ser vivo e dele faz uso para atingir seus fins, não visa a garantir dignidade a quem quer que seja, e os excluídos do processo de produção, os economicamente desnecessários, que são os desempregados — menos que os escravos — não têm, na prática, direito garantido sequer à existência.
Somos, assim, levados a concluir: seguramente não estamos diante de uma ética cristã, ou que guarde sequer um pálido reflexo do cristianismo.
Fica, então, a pergunta: Pode ser aceita a primazia do trabalho, como pretende Weber em seu ensaio, dentro do marco de um sistema ideológico, político, econômico e social que, como o próprio nome denuncia, privilegia, com exclusividade, o capital, e no atual período, mais especificamente o capital financeiro, ou seja, o dinheiro, o totem da Modernidade?
2. O Pressuposto Essencial da Ética Puritana
A ética, entendida como técnica de conduta humana, está intimamente correlacionada à justiça, valor máximo da humanidade, expressão do direito garantido ao mais fraco de ser equiparado ao mais forte, em sua coexistência necessária ou voluntária. Assim, toda construção ética não pode deixar de estar correlacionada, e, na verdade, depende essencialmente de valores morais, e muito especialmente do valor eqüidade, que só pode ser estabelecido em função do ser humano e tendo-o por fim último, já que os juízos morais são juízos de valor, como ensina Scheler, acompanhado por Findlay.
Hume e os moralistas ingleses do século XVIII já colocavam o sentimento ou sentido de humanidade como o fundamento da moral, que também se encontra em Kant, expresso na fórmula de que se deve tratar à humanidade, tanto na própria pessoa como nos outros, sempre como fim e nunca só Como como meio.
Sobre essa corrente de pensamento religioso que Weber denomina "ética protestante", pretensamente tendo por valor essencial o trabalho humano, é interessante observar como, desde seu surgimento, levou à sacralização do direito de propriedade privada e como desembocou, desde cedo, num materialismo e hedonismo desenfreados, já que o verdadeiro capitalista — cuja riqueza seria sinal da benção divina, segundo Calvino — cedo passou a viver das rendas do seu capital, não do seu trabalho, exatamente como os nobres medievais, que viviam da renda da terra e da proteção que vendiam a seus súditos, não do seu trabalho produtivo.
Weber refere-se a esta "ética peculiar" como a "filosofia da avareza", tomando por base o "ideário" de Benjamim Franklin. E estabelece como summum bonum desta "ética" (que ele próprio encarrega-se de colocar entre aspas) "a obtenção de mais e mais dinheiro". No entanto, a base da verdadeira ética cristã é o princípio da prioridade do trabalho sobre o capital, expressa de forma cabal no denominado Evangelho do Trabalho, ou seja, na vida mesma do fundador da religião cristã, o próprio Cristo, operário especializado, carpinteiro de profissão, como seu pai (cf. Mt 6,3: "Não é ele o carpinteiro...?'').
Este princípio, também expresso no multimilenar lema da Igreja Católica "Ora et labora", ou seja, reza e trabalha, diz respeito diretamente ao próprio processo de produção, relativamente ao qual o trabalho é sempre causa eficiente primária, enquanto que o capital, conjunto dos meios de produção, há de ser tão-somente um instrumento, ou causa instrumental.
Invertido pelo protestantismo puritano-calvinista, este princípio forneceu a fundamentação "ética" de que necessitava o sistema capitalista moderno, racionalista, para promover a disseminação do ideal de vida ascética na classe trabalhadora e a conseqüente idealização do trabalho racional e disciplinado como instrumento da realização da vontade divina, ensejando, com base nesses pressupostos, o progresso econômico, marca da Modernidade, profundamente marcado pelo desprezo ao valor subjetivo do trabalho humano e gerador do aprofundamento da injustiça social.
A ética protestante a que se refere Weber estabeleceu, portanto, o dinheiro como valor absoluto diante do qual os demais deveriam desaparecer. Por conseguinte, rebaixou o homem ao mesmo plano da matéria, como mais um entre tantos recursos de que o empreendedor capitalista deve lançar mão.
Importa aqui deixar estabelecido que duas dimensões possui o trabalho humano: objetiva e subjetiva. Objetivamente, pelo exercício de sua atividade laborai, seja ela intelectual, artística ou mesmo meramente física, o ser humano, provoca a transformação da natureza para satisfazer às suas necessidades.
Mas muito além disso, sob o ponto de vista subjetivo, pelo próprio exercício de sua livre atividade, o ser humano realiza-se a si mesmo, torna mais plena sua própria dignidade intrínseca.
Ou seja, somente pelo trabalho livre pode o ser humano plenificar sua condição humana. Especificamente por isso, o trabalho deve ser entendido, acima de tudo, como um bem próprio da humanidade, de máximo valor, não como instrumento a serviço da acumulação capitalista de bens materiais.
Negado, porém, o conteúdo transcendente e espiritual da humanidade, instrumentalizada a atividade laborai em favor do capital, e conseqüentemente negado — isso desde os primórdios da era capitalista puritana — o trabalho digno em sua dimensão subjetiva como direito inalienável, chegamos à verdadeira definição da ordem de valores pseudo-éticos, aos pressupostos reais do capitalismo puritano moderno.
Daí se depreende que aquilo a que Weber se refere como a ética protestante — que, na verdade, resume-se apenas a uma postura diante da vida que não leva em consideração o bem efetivo do ser humano, e que o próprio Weber denomina significativamente de "filosofia da avareza" — é, inequivocamente, uma boa e sólida base de sustentação ideológica para a consolidação do ideal de uma classe em ascensão, a burguesa, e do sistema econômico-social de seu interesse, o capitalismo moderno. Conforme Friedrich Hayek, maior pensador neoliberal da atualidade: "o que se requer para justificar um plano concreto não é uma convicção racional mas a aceitação de um credo".
Nesse sentido, inegável a existência da correlação enunciada pelo sociólogo alemão no título de seu ensaio, desde que decodificados os termos em que normalmente é posto o ideal calvinista da maior glória de Deus, como a maior glória do deus-capital, hoje, principalmente, do deus-capital financeiro, o dinheiro.
3. Conclusão
Até aqui refletimos um pouco sobre os termos utilizados por Weber para estabelecer sua famosa correlação entre "ética protestante e espírito do capitalismo". A partir da elucidação dessas bases conceituais, acreditamos poder apresentar a questão central a ser refletida, relativa à própria essência da tese weberiana, qual seja: poderia efetivamente a valorização da atividade laborativa do ser humano, expressão exterior de suas energias físicas e mentais, pretensa essência do protestantismo puritano-calvinista, constituir o pressuposto ético da construção de um sistema econômico-social, o capitalismo, que valoriza exclusivamente o capital e reduz o ser humano a mero instrumento de acumulação de bens e dinheiro?
Não estaríamos aqui diante de uma incongruência? A valorização, no mais alto grau, do conteúdo do ser humano, exteriorizado por seu trabalho, servindo como base e justificação ética para sua mesma desvalorização e depreciação no sistema capitalista!?
Em outras palavras: a tese weberiana de que a "ética" dos protestantes estaria centrada no valor ético do trabalho, transformada em algo como um dogma de fé "científica", coloca-nos diante de uma verdade irretorquível, diante da qual só nos restaria curvar-nos. Esse "dogma" poderia ser assim enunciado: "a ética puritana valoriza acima de tudo o trabalho humano, tem-no como valor maior, sobreposto a todos os demais valores da vida humana". E seu corolário seria: "os puritanos, laboriosos, que gostam de trabalhar e poupar, progrediram e dominaram os preguiçosos não-puritanos". A aceitação do "dogma" e do seu corolário levaria, em princípio, à aceitação da correlação defendida por Weber em seu ensaio.
Retomamos, porém, a pergunta: como é possível ter-se gerado um sistema econômico-social que "coisifica" a expressão mais notável do ser humano, o trabalho, instrumentaliza-o, retira-lhe sua dimensão mais propriamente humana, subjetiva, sua dignidade, mediante a aplicação dos pressupostos de um sistema ético que teria por valor maior este mesmo trabalho?
E, ainda, ad argumentandum: se um levasse ao outro, isto é, sendo a ética puritana a do trabalho e sendo este a base para a construção de um sistema econômico-social, por que não tem este a denominação de trabalhismo, mas sim de capitalismo?...
Não negamos — tornamos a insistir — a existência da correlação weberiana básica: pressupostos puritanos no capitalismo moderno. Colocamos, isto sim, a questão: é possível que, partindo da valorização do trabalho no mais alto grau, se chegue à valorização do capital no mais alto grau? Não se pode reconhecer qualquer incongruência nesse caminho tão tortuoso percorrido por Weber?
Chegamos, então, a duas hipóteses:
1a. o capitalismo não valoriza o capital, mas sim o trabalho;
2a. o verdadeiro pressuposto ético do puritanismo não é o trabalho, mas sim o capital.
Eliminamos in limine a primeira hipótese, por absurda.
Restando-nos a segunda, pelas razões já expostas, somos levados a concluir:
1) o sistema pseudo-ético e pseudo-cristão do puritanismo tem por valor maior o dinheiro e a acumulação de capital, e desconsidera os valores inerentes ao ser humano de conteúdo moral;
2) esse sistema de degradação da dignidade do ser humano foi o instrumento habilmente manipulado pelos donos dos meios de produção (classe burguesa) para a dominação racional da classe trabalhadora, mediante:
2.1) a criação de um ambiente sócio-cultural asceticamente disciplinado, pela secularização — entenda-se popularização — de importantes aspectos da vida monacal, que tão brilhantes resultados havia propiciado para a Igreja Católica ao longo de sua história;
2.2) a instrumentalização do trabalho racional, no ambiente sócio-cultural formado, para consecução do objetivo de acumulação patrimonial acelerada.
Para finalizar, uma observação: o hobbesiano estado de natureza econômico imposto pelo capitalismo moderno, de estilo originariamente puritano, sob o signo do qual hoje vive toda a humanidade, exatamente por ser absolutamente desvinculado de valores éticos, vem acumulando tensões internas de ponderável magnitude, cuja crescente ampliação tende a levá-lo a forte corrosão e, por fim, à autodestruição, como o gigante de pés de barro da profecia bíblica...
Como afirma George Soros: "se a economia global se mostrar vacilante, e quando isso acontecer, as pressões políticas provavelmente a desintegrarão" e "chego a uma conclusão muito mais definitiva sobre o futuro... Prevejo a desintegração iminente do sistema capitalista global" (op. cit. pp. 150 e 151).
Para a construção de novas bases éticas para a sociedade humana há necessidade de estabelecer-se firme
convicção do primado do ser humano, de sua dignidade intrínseca, de seus valores e direitos fundamentais — inclusive e especialmente ao trabalho digno, justamente remunerado — sobre as coisas, bem como do trabalho sobre o capital.