Artigo de autoria de Luiz Geremias *
Diz Zygmunt Bauman que a sociedade de consumo só pode prosperar enquanto conseguir tornar perene a insatisfação de seus membros, isto é, enquanto puder promover a infelicidade deles. Em outros termos, o que é feito é a promoção dos desejos e a sua quase imediata frustração. Isso é muito complicado, pois tudo parece indicar que o propósito é a felicidade, já que as falas e discursos publicitários seguem nesse sentido.
A proposta é a da satisfação de todos os desejos a partir da aquisição de objetos. Ora, se isso fosse possível, a própria proposta não se sustentaria, pois o consumidor satisfeito não compraria mais nada, não consumiria. Logo, não é a satisfação que se propõe, mas a eclosão de mais e mais desejos que jamais serão satisfeitos a não ser momentaneamente e, com toda certeza, insatisfatoriamente, dada a quase instantânea obsolescência dos objetos adquiridos. Não há qualquer perspectiva de satisfação, pois isso solaparia a lógica do sistema. Há, de modo oposto, a promoção da insatisfação.
O consumidor se encontra num dilema terrível. De algum modo, como a felicidade é a promessa fundamental, ela se torna praticamente obrigatória e a infelicidade, assim, se torna praticamente um crime (ou, no mínimo, um desvio pecaminoso, diz Bauman) – Jean Baudrillard já havia enunciado isso há décadas, falando do fun system. O sujeito feliz é a meta, mas o sujeito infeliz é a realidade essencial. Dupla mensagem que enlouquece e que obriga o sujeito a se sujeitar a uma vida infeliz plena de afirmações de felicidade.
‘Pânico moral’
Haja sanidade. Mas, afinal, sanidade é tudo o que não se espera do consumidor. Não é, definitivamente, uma virtude pós-moderna.
A insegurança básica do consumidor é o terreno sobre o qual viceja aquilo que Bauman chama de ‘pânicos morais’. Trata-se de terrores difusos que se concentram em alvos fixos, específicos e tangíveis, porém irreais – ‘O erro nunca está no próprio sistema, sempre foi alguém que cometeu algum desacerto ou crime’, lembra Robert Kurz.
Esses alvos, com incrível freqüência, são colados às ‘pessoas sem valor de mercado’, aos ‘consumidores falhos’, pessoas que, por diversos motivos, não se conformam ou se adequam às atividades de consumo e devem representar, para os consumidores padrão, tudo aquilo a ser evitado (pessoas que, se possível, devem sumir da vista). Genericamente, são conhecidos como ‘subclasse’, um agregado de pessoas declaradas fora dos limites de classe social, com exíguas chances de integração. Alguns os definem como lumpens, mas no frigir dos ovos não passam de ‘bodes expiatórios’ aos quais a sociedade transfere seus pecados e, por conta disso, os apedreja.
Um bom exemplo vem do Rio de Janeiro, onde Eduardo Paes, o novo prefeito (que parece seguir os ensinamentos do antigo prefeito Cesar Maia, muito embora, por prováveis motivos circunstanciais, tenha sido eleito como oposição), inventou o slogan ‘Choque de Ordem’ para denominar o ataque prioritário a camelôs, invasores e moradores de rua, mas também a outros infratores menores, como motoristas que estacionam nas calçadas e também a construções irregulares. O slogan identifica uma ação fundada na promoção de um ‘pânico moral’ e na crença infantil de que, sumindo da vista, essas ‘pessoas sem valor de mercado’ trariam bem-estar aos consumidores ‘com valor de mercado’.
Ordem, insegurança e terror
O ‘Choque de Ordem’ está fundamentado na ideologia da ‘Tolerância Zero’, criada em Nova York há aproximadamente uma década e já evocada pelo ex-governador carioca Anthony Garotinho para criar uma ‘sensação de segurança’ na população. O novo prefeito não parece muito original.
De forma clara, esse zeramento de tolerância se define por perseguir e encarcerar os pequenos criminosos, o que deixa em aberto se os grandes criminosos seriam também perseguidos. Na prática, parece que não seriam, não são e nada indica que efetivamente o serão. Para o grande crime, a tolerância parece ser mais folgada. Disso, não é ordeiro falar, pois é chocante demais. Não é muito polido dizer que o tal ‘Choque de Ordem’ não é mais do que a expulsão dos pobres de lugares com potencial para especulação econômica e imobiliária.
Em resumo, no ‘Choque de Ordem’ os personagens são principalmente os camelôs, os desempregados, os invasores e os moradores de rua, isto é, os maus consumidores. O objetivo é fazer crer aos consumidores cariocas que são esses pobres-diabos que causam a insegurança. E mais: que uma bela imagem urbana, ‘ordeira’, é fator de segurança. Doce e trágica ilusão.
Ora, como dito anteriormente, ao mesmo tempo em que a vida insegura é a essência desta sociedade, há os que nos querem fazer crer o oposto. E mais: que o que atrapalha a segurança são os ‘outros’, os diferentes, ou, bem se pode dizer, os maus consumidores, os pobres que usam as calçadas para vender todo tipo de coisas ou simplesmente para dormir. Para eles, diz Bauman, tolerância zero.
As coisas são tão loucas num mundo assim que é possível mesmo afirmar que quanto mais ordem, mais insegurança, quanto mais ‘segurança pública’, mais terror. Mas, esse é o jogo e é preciso saber jogar com essas regras sem enlouquecer. De todo modo, é sempre útil saber que nos estão enganando e que a nossa loucura e a nossa estupidez são fundamentais para a sobrevivência dessa lógica social. Saber disso faz sofrer, mas ao menos nos devolve um pouco de sanidade.
Mais insegurança, mais infelicidade
Com alguma sensatez, é possível apontar para a chamada ‘grande imprensa’ como a difusora dessa tramóia discursiva. É nos jornais, nas rádios, nas TVs e nos portais noticiosos que a ‘população ordeira’, os ‘consumidores com valor de mercado’, ficam sabendo que a cidade será ‘chocada pela ordem’. E, principalmente, essas práticas são noticiadas sem qualquer abordagem crítica: muito pelo contrário, costumam receber incentivos esperançosos do tipo ‘a iniciativa é louvável’. Nisso consiste, em grande parte, a objetividade e a imparcialidade desses respeitáveis veículos.
As empresas de comunicação se definem como aliadas da ordem consumista. Promovem o medo e a insegurança, minam a sanidade. São parceiras na proposição fantasiosa de que, adequando-se a essa ordem, o sujeito encontrará a satisfação, embora essa não seja a verdadeira proposta. Nem ao menos a formação de uma consciência crítica a grande imprensa tem promovido, o que seria a sua função pública.
Nesse sentido, o jornalismo cada vez mais se aproxima da publicidade, criando frases e arranjando notícias especificamente para conseguir dois objetivos fundamentais: desviar a atenção da insegurança do consumidor, dirigindo-a para alvos fantasiosos, e patrocinar mais insegurança e mais infelicidade mascarada de felicidade. Mesmo que pareça anacrônico, não é demais repetir: haja sanidade para lidar com isso.
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Psicólogo e jornalista